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Nunca me esqueço da morte de um tio da minha mulher, o tio Valmor. Morava no interior de Jaguari, onde trabalhava na lavoura, plantava cana de açúcar, fabricava cachaça, criava alguns bois, cultivava outras culturas como feijão, soja, milho e fumo. Trabalhava demais. Conseguiu tanta coisa em tão pouco tempo! Traduziu tão bem o que é vencer através do trabalho. Ele era jovem, 35 anos, mente aberta, pensamento inovador, isto numa região em que a maioria tinha a vocação para o atraso. Tio Valmor adquiriu bens, máquinas, tratores, caminhonete, galpões. Sempre acumulando capital. Era bonachão, simpático, estava sempre rindo. Éramos amigos.

Até que um dia começou a sentir as primeiras dores, no pé. Consultou, mandaram num “arrumador de ossos”. Havia um famoso, morador na Caixa de água, onde nasceu Luiz Mattiazzi. Voltou de lá com mais dor. Começou a apresentar outros sintomas, a saúde foi se deteriorando. Sentia dores horríveis. Finalmente foi diagnosticado com um tipo de câncer. Parou de trabalhar. O sorriso, tão característico começou a diminuir.

Vocês não imaginam o que é a gente assistir alguém a definhar lentamente, urrando de dor. Amputaram-lhe o pé. Nada mudou. Amputaram-lhe a perna. A dor seguiu mais forte. Ele me dizia que sentia dor no pé que não havia mais, o que havia sido amputado. Psicológico? Sempre que eu ía em Jaguari corria para a casa dele. Nas últimas vezes notei manchas azuladas no corpo. Ele tinha pequena confusão mental, seu corpo estava frio, sempre com dor. É terrível assistir, impotente, a dor alheia. Eu sou um covarde, ele era uma fortaleza. A que custo emocional eu estava ali. Mas ele dizia que gostava de falar comigo. Na última vez parecia cansado, o cabelo havia caído. Era um rascunho do ser humano que havia existido. Parecia que um trator havia passado por cima dele. Levo essa imagem pelo resto da vida.

Na última vez que falei com ele, me chamou para bem próximo, falou baixinho: “Sei que tu sempre usou revólver. Por favor, deixa-o embaixo do meu travesseiro. Eu não aguento mais. Estou consciente. Temos o nosso caminho a trilhar na vida. Eu já trilhei o meu. Não tenho medo de partir. Vou só esperar meu filho fazer aniversário amanhã e vou embora. Tragam o padre, não por mim, mas pela mamãe. Ela vai ficar feliz”. Tive o privilégio de ser a pessoa a quem ele pediu ajuda. E eu não pude dar. Nunca tive condições de aconselhar ou consolar ninguém, mas naquele dia eu estava tão fragilizado que chorei. Chorei como uma criança. Não tive coragem de ajudar no suicídio assistido.

Tio Valmor entrou em coma e morreu, dois dias depois. Cercado de pessoas boas e más. As boas queriam ajudar, as outras vieram por curiosidade mórbida.

Guardo dele uma faca que ganhei de presente. Retribuí com um gesto, um olhar, um copo de água. Dos líderes que admirei na vida guardaria até uma alpargata usada. Ele não levou na “aeronave” para a viagem, seu trator, seu caminhão, automotriz, galpões. Nesta viagem só levamos gestos, o que se fez de bem.( Ou de mal).

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