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por Victor Matheus Soares

Truman Capote foi um escritor singular. Conhecido pela excentricidade, alcançou alguma notoriedade com a publicação de uma novela intitulada Breakfast at Tiffany’s , traduzida no Brasil como Bonequinha de Luxo, em 1958. Seu maior feito literário, no entanto, viria alguns anos depois sob o título de A sangue frio, inaugurando um gênero que o próprio autor batizou de nonfiction novel, algo como romance de não-ficção. A aparente contradição do termo é proposital e resulta da confluência de características diversas na criação de uma só obra. Em suma, tem-se mantidos o formato e a estética de romance – sobretudo no que diz respeito às descrições, diálogos, aprofundamento de personagens e fluidez da trama -, mas com a intenção de desenvolver uma história real, retratando um evento notável apenas com a rigidez dos fatos.

Conta-se que Capote teve a ideia para o livro a partir de uma pequena manchete em um jornal matinal que, sem muitos detalhes, tratava do assassinato de quatro membros de uma família em uma minúscula cidade no interior americano. Seu interesse fez com que viajasse para o local do crime, acompanhado por sua amiga, e também notável escritora, Harper Lee. No período que se seguiu, os dois entrevistaram, sem o auxílio de gravadores ou mesmo caderno de anotações, praticamente todos os habitantes da cidade, além das autoridades do caso e dos próprios assassinos e seus familiares. O plano era absorver todos os aspectos possíveis e depois retratar, com extrema minúcia e elegância, não só o terrível destino da pacata família interiorana, mas também, eis aqui o ponto crucial, a história dos criminosos, a dolorosa trilha dos homicidas, o caminho da atrocidade.

Talvez nisso resida o maior triunfo do livro. Ficamos sabendo da rotina da família, seus hábitos, suas características de personalidade, e nisso tudo vislumbramos um quadro bastante nítido. Uma simpática ordem familiar, com um rico e honesto fazendeiro, sua amável esposa e seu gentil e promissor casal de filhos. Essas informações nos são dadas com um propósito narrativo, que é, em um primeiro plano, gerar identificação, e, com o avanço do relato, fazer com que a tragédia pese sobre nossas impressões, nos levando a assistir o desabamento da família perfeita, ainda que levemente disfuncional, pela força do horror do sangue vão. Mas esse aspecto é balanceado pela estrutura do romance, que intercala pontos de vista, de modo que conhecemos a família ao mesmo tempo em que acompanhamos os preparativos dos assassinos; vemos as reações locais ao crime enquanto seguimos a rota de fuga dos criminosos; nos compadecemos dos sonhos interrompidos dos mortos e, na página seguinte, nos emocionamos com a triste história de seus algozes.

Tudo isso orquestrado pelos contornos límpidos da pena de Capote, que tenta a todo custo nos fazer cair em contradições e encarar verdades horríveis, entre as quais a mais tenebrosa talvez seja a de que algumas pessoas que cometem atos atrozes, violências inomináveis e odiosos crimes sangrentos não são assim tão diferentes de nós. O monstro humano habita, notamos aos calafrios, muito mais próximo do que gostaríamos de admitir. É extremamente ofensivo à nossa humanidade perceber que já não é tão fácil separar um comportamento normal de uma horrenda e distante anomalia. Não se trata, por óbvio, de defender que criminosos sigam impunes porque resta neles alguma humanidade, não tratamos aqui de defender a irresponsabilidade. A questão é, nos parece, muito mais profunda e desconfortável: o que a identificação com uma pessoa horrível diz sobre nós mesmos?

Se ficarmos apenas na literatura, já são abundantes os exemplos de obras que buscam perverter, ou ao menos confundir, o senso moral e a certeza da virtude de seus leitores. Em Crime e Castigo, por exemplo, acompanhamos um jovem que, por motivos confusos, assassina sua senhoria a golpes de machado e padece de um mal terrível, nos fazendo sentir o frio e a fome que enfrenta. Em Lolita, ouvimos o relato de um pedófilo que procura se explicar por meio de uma belíssima narrativa, e precisamos, por vezes, lembrar que estão tentando nos enganar. É claro que esses mecanismos não atuam para incentivar um homem comum a desenvolver práticas nefastas, mas servem a propósitos muito mais nobres, o de duvidar da nossa própria santidade, o de compreender que a natureza humana é pelo menos um pouco mais complexa do que imaginamos e, em especial, o de estar ciente da nossa proximidade com o pecado.

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