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A insensatez da cobra

A insensatez da cobra

Da falta de assunto surge o assunto. Meu pai sempre falava disso. Quando o silêncio se alongava numa roda de amigos ou visitas, alguém sempre dizia: – Mas e esse tempo, será que chove? E então o assunto fluía. Pois hoje, na falta de assunto, vos escrevo sobre o incidente recente que se passou comigo: fui picado por uma cobra. Titulei o artigo como A Insensatez da Cobra. O poeta Manuel Bandeira, cujos poemas li no leito do Hospital Universitário de Santa Maria, escreveu em uma de suas pérolas, que insensato é o homem que busca sensatez ou razão no ataque de uma cobra venenosa. Questões ambientais, desmatamento, formação de lavouras, fizeram com que o homem ocupasse historicamente um espaço que sempre foi dos animais. Então, esses animais peçonhentos, estão hoje mais presentes ao redor das moradias. E em consequência, os acidentes também se tornaram mais frequentes. Andei lendo que acontecem em torno de 26.000 picadas de cobra por ano no Brasil. Uma delas aconteceu comigo há vinte dias.

Na vida cotidiana, situações de provação geram medo, colocam à prova nossa capacidade de superação, exigem coragem. Estava trabalhando em minha propriedade rural, no interior de São Francisco de Assis quando fui picado por uma Urutu Cruzeira, uma das mais agressivas e venenosas, que habitam o Uruguai, Paraguai, sul da Argentina e do Brasil. Pertence à família das jararacas, cascavéis. Minha esposa, pilotando como nunca um Gol 1993, me levou ao Hospital mais próximo, Jaguari, a trinta quilômetros do local do incidente. É um hospital pequeno, com baixa capacidade resolutiva, onde não havia soro antibotrópico, mas mesmo assim, o atendimento foi excelente. O resultado do exame foi encaminhado ao CIT, Centro de Investigação Toxicológica, de Porto Alegre, órgão especializado em prestar assessoria e orientação frente a acidentes tóxicos como, por exemplo, com venenos de escorpiões, aranhas e serpentes. Desse órgão eram disparadas as orientações para a condução do meu tratamento. Imediatamente fui conduzido ao HUSM, de Santa Maria, onde recebi doze ampolas do soro antibotrópico, prescritas pelo CIT. Segui a recomendação usual: chegar o mais rápido possível ao atendimento médico, manter a calma e, acima de tudo, suportar a dor. Essa foi terrível. Enquanto isso, sabia que o veneno estava inoculado no meu sangue. Eu poderia, a qualquer momento, ter uma parada respiratória, sangramento, anomalias cardíacas, renais, pulmonares. Senti que estava ofegante, comecei a apresentar um quadro com congestão pulmonar e tosse com expectoração sanguinolenta. Fiquei tão mal que recebi oxigênio suplementar.

Seria impossível, além de arrogante e pretensiosa a tentativa de esgotar um assunto tão vasto nesse pequeno espaço. A doença traz consigo o medo da morte ou pelo menos a percepção dela. Não consigo esgotar minhas aflições, tensões, medos, numa coluna de jornal. Talvez surjam daqui dois artigos sequenciais. Me desculpem. Quero dizer que saí do episódio meio centímetro mais alto. Cresci. A vida é cheia de dor. Temos que crescer com as dores, nos fortalecer, a sair maior com a rasteira que a vida nos impõe. A vida me ensinou ao que a escola não conseguiu. Me ensinou a pensar, a refletir. Estou preparado para a próxima bordoada. Permanecer quinze dias de pijama é tempo demais, quinze dias sem caminhar é tempo demais, ficar duas semanas sem ver o Sol é uma eternidade. Tenho uma dívida grande, uma dívida que jamais serei capaz de quitar. A primeira é com o dr. Juliano, o médico que salvou minha vida. Homem de palavreado calmo e decidido. O homem e a ciência, em harmonia, o saber e a dedicação. A competência e o respeito pelo paciente. Nos tornamos amigos. Obrigado, doutor Juliano Vicente Rodrigues. Da mesma maneira agradeço ao dr. Artur Roos, aos enfermeiros, aos professores da Faculdade de medicina. Todos foram além dos seus limites! Como vivo rodeado de livros um professor comentou: – O senhor gosta de ler, seu Clóvis. Respondi que ler um livro não faria de mim um homem culto. Mas eu não seria o que sou, e sou tão pouco, não fosse a leitura. Não me conformo com a condenação a uma existência insignificante, sem minhas viagens, sem minhas leituras.

A mordida da cobra trouxe força dramática suficiente para que eu refletisse sobre a enxurrada de mensagens que recebi. Amigos dos quais não tinha notícias há mais de cinquenta anos, queriam saber como estava minha saúde. Meus ex-colegas do Colégio Agrícola de Alegrete, espalhados pelo Brasil, muito obrigado pela preocupação. Amigos de toda a parte, obrigado. Como foi bom ler mensagens de todos vocês. Até eu começar a ter uma recuperação ascendente tive bastante medo. Sabia que poderia morrer. Só se ilude quem se ilude. São várias as fases pelas quais se passa num hospital, lutando pela vida. O ambiente não é dos melhores, mesmo com o esforço dos profissionais. Um quarto de enfermo é tão deserto. Aquele silêncio nos deixa com a pulga atrás da orelha. Um hospital é um edifício estéril, impessoal, institucionalizado, com paredes brancas, lâmpadas fluorescentes, piso branco, tudo igual. As paredes são frias nos longos corredores dos hospitais. Impera o silêncio das salas de espera ou o ruído da agonia, da dor, o som da degradação humana, do desespero, da desesperança. Me senti como um morto aprendiz. A noite me surpreendia pensando nos meus filhos, na minha mulher, nos meus amigos. Até que o sono me dominava. A morte deveria ser assim. Que aos poucos escurecesse e o doente nem soubesse que era o fim. Sabemos que não ficaremos para a posteridade. Não importa o que fomos, quem somos, um dia vamos morrer. Aliás, a eternidade é muito comprida, me dá sono só em pensar. O Papa vai morrer, a Rainha da Inglaterra vai morrer, Sílvio Santos vai passar desta para outra. Vamos esquecer nossa mania de grandeza, nossa arrogância, nossa soberba. Ricos ou famosos iremos todos para o mesmo destino.

Por um lado, foi bom que fui mordido pela cruzeira, senão jamais teria escrito este texto, embora o tenha feito sem a qualificação que meus sete leitores merecem, pois não detenho o dom discursivo e expositivo que gostaria de ter. Mas faço um esforço hercúleo, transcendo meus limites de escriba provinciano para contar o fato, para agradecer à Lízia, minha cunhada, essa gigante, aos meus filhos, meus heróis, à minha mulher, a única, a meus médicos, cuja dedicação e competência fazem do HUSM uma autêntica referência estadual em medicina.

Encerro a narrativa com um poema do grande Mário Quintana, nosso poeta maior, do Alegrete. “Da Humana Condição. Custa o rico entrar no céu (afirma o povo e não erra). Porém muito mais difícil é um pobre ficar na terra”.

 

 

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