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Um passageiro do tempo revela a história

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por Clóvis Medeiros

Setenta e nove anos! Essa a idade do Vanil João Guarize, popularmente conhecido como Palanque. Dotado de uma memória de impressionante lucidez, conversou com o repórter do Gazeta há poucos dias. Há tempo que esta matéria era para ter sido escrita, mas o tempo, ah o tempo, fez com que fôssemos deixando para depois. Até que enviamos um recado ao nosso personagem pedindo que quando este viesse à cidade, procurasse o Clóvis Medeiros para conversarem. Sexta pela manhã adentrou compulsivamente na nossa loja, deixando um rastro de barro e de bosta de vaca, fazendo um trilho desde a porta de entrada até a cadeira onde sentou e perguntou pelo autor. Trazia uma gaita nas costas, vestia um par de botas de couro cru, bombacha de dois panos, lenço colorado ao pescoço, guaiaca e um chapéu de abas largas. Se estava armado, não o sabemos, mas não seria surpresa se portasse um revólver. Estampa curiosa, que fez dele uma figura conhecida em toda a região. Barbas longas, melena, orgulhoso de possuir o maior bigode do Rio Grande do Sul, lembra uma charge do Berega. Passamos a ouvir sua história para registrá-la aqui. Todo aquele aspecto de campeiro rústico, imponente, não revela o homem cordial, muito educado, polido, simpático que começa a contar a sua trajetória. É rico o acervo transmitido pela oralidade que se revela numa mistura de fatos com criação imaginária do nosso personagem que demonstra ar de mistério em determinadas passagens.

Vanil João Guarize

Nasceu em Ijucapirama, interior de Jaguari, mais um filho de uma família pobre que ganhava a vida nas lidas da lavoura. Naquela propriedade pequena, a luta pela subsistência era árdua. Cansado, sem ver horizontes promissores, aos vinte anos resolveu ‘ganhar o mundo’. “Fui trabalhar numa estância em São Luiz Gonzaga. Fiz de tudo um pouco. Trabalhei de peão em fazendas e por ser muito magro fui jóquei, domei cavalos, conduzi tropas, fui alambrador, fiz de tudo um pouco mas sempre fui homem de confiança do patrão. Sempre fui de boa índole mas não se enganem, sempre fui maleva. Não sei o que é medo! Certa vez, estava num baile dançando com uma prenda quando encrenquei com um “melenudo” que eu não conhecia. Ele teria dito à moça que dançava comigo que ela não deveria mais fazê-lo porque eu seria um bandido. Então eu disse: te afasta que eu vou acertar essa história. Chamei ele para fora da sala, trocamos três ou quatro palavras e nos atracamos na faca. A noite era um breu. Sei que cortei o valentão mas acabei caindo no chão e ele me apunhalou pelas costas. O médico teria dito que a ponta da faca quase encostou no coração. Dois meses depois, ao entardecer, o Sol ia entrando, perto de uma sanga, nos encontramos. Ao me ver ele fez menção de puxar de uma arma e eu fui mais rápido. Atirei seis vezes e vi ele sumindo num “chircal”, à beira de um capão de mato. Não quis verificar porque sou homem prevenido. Voltei no outro dia para ver se tinha matado o homem. Não achei corpo nenhum. Até hoje não sei se acertei algum dos seis tiros, se fiz algum estrago no homem”, conta.

Como a situação não estava muito segura para o Palanque na região de São Luiz, resolveu seguir adiante e veio parar na divisa com a Argentina. Fazem 56 anos que chegou em Porto Mauá. O repórter pergunta: O quê tu fazia lá? Ele então respondeu: “Tudo o que tu imaginar eu já fiz nesta vida. Contrabandeei, briguei, dei bordoadas, apanhei, fiz outras artes que não posso te contar. Certa feita, atravessei umas 40 latas de banha, 50 sacos de farinha, trazidas da Argentina, de noite, por fora do porto. Alguém me denunciou, não pude correr e o pessoal da Marinha me prendeu. Fui parar num Juiz Federal, em Porto Alegre como contrabandista. A coisa foi feia, fiquei um bom tempo preso. Quem me tirou da cadeia foi o Dr. Daltri Cardoso Teixeira, um grande homem, a quem devo muita obrigação. Outra pequena encrenca que tive foi com um castelhano, de Porto Rico, província de Missiones. Fiz um negócio com ele e atravessei 12 fogões à lenha e uma carga de fumo em corda, daqui para lá. Entreguei a mercadoria e o homem fugiu sem me pagar. Fiquei rastreando o indivíduo durante muitos dias até que o encontrei, lá por Posadas, divisa da Argentina com o Paraguai. Me paga ou vai visitar São Pedro. O argentino já havia gasto o dinheiro dos fogões e do fumo e restou me entregar uma caminhonete, muito velha. Desmontei e trouxe as peças para o Brasil. Mas prometeu me matar”, disse.

Como havia aprontado muitas estrepolias, nos dois lados do Rio Uruguai, Palanque estava jurado de morte, a Polícia queria prendê-lo. Resolveu se homiziar no vizinho país Uruguai. Acabou numa das fazendas do Leonel Brizola até ficar mais calma a situação por aqui. Regressou ao Brasil resolvido a “sentar o pelo”. Comprou um pedacinho de terra em Matinho Queimado, Tuparendi, onde vive até hoje. Arrumou uma namorada: a Dalva, sua esposa até hoje e com quem teve dois fihos: o Vanilson, brigadiano e a Deisi, professora. Há trinta anos tem um bulicho, cancha de bocha, teve cancha de carreira. É um lugar aprazível, onde construiu açudes. Lembra que o Dr. Daltri o presenteou com um casal de búfalos. Se adaptaram tanto que o Vanilson, vivia montado no animal. Brincavam dentro do açude numa perfeita harmonia entre o animal e a criança.

Vanil João Guarize, o Palanque. Tocador de gaitas. Contador de histórias. Fez de tudo na vida. Cruzou os campos do Rio Grande tropeando, lavou a cara nas águas do Rio Uruguai, ultrapassou fronteiras, foi pobre, nunca foi rico. Mas vale ouro. Pelo seu caráter, pela fidelidade que dedica aos amigos e à família, pela riqueza cultural de suas histórias, pela experiência adquirida na vida. “Vi tanta coisa na vida que guardo na retina imagens de quase oitenta anos passados. Essas imagens vão embora comigo no dia em que este corpo, condenado à morte, vá servir de pasto aos bichos da terra!”, encerrou.

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