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RECORDAÇÕES

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Reminiscências. Lembranças, fagulhas da memória. É isso que preenche os intervalos em que não trabalho. E agora trabalho um pouco menos, devido a idade avançada e a recuperação do acidente com a cobra Cruzeira. Ando pensando muito em meu pai, que já nos deixou há mais de vinte anos. Como faz falta. Precisamos dos outros para sobreviver um pouco mais, nem que seja das lembranças dos outros. Sinto muita falta do meu pai, tive uma vida muito ligada a ele. Para mim ele era o modelo, o exemplo de atitudes corretas e de caráter. Dizer que ele foi um santo seria exagero. Mas posso dizer que ele teve um papel quase messiânico para nossa família. Meu pai não mentia. Não lograva ninguém. Seu único vício era o de pescar lambaris aos domingos de manhã no açude, próximo da nossa moradia. Foi na escola muito pouco tempo. Nunca soube quanto. Estudar na cidade era coisa para filhos de ricos. Pouco entendia de números, fazia, precariamente, duas operações: soma e subtração. Do que entendia mesmo era de gado, cria e recria, porcos, galinhas, plantações, pastagens.
Há poucos dias estive na velha morada e de lá trouxe uma foto antiga, muito antiga, do meu pai montado à cavalo, com garbo, orgulhoso. Um gaúcho à cavalo se sente grande, seguro. Essa foto, que o Fernando, meu filho vai mandar restaurar, diz muito do meu pai. Montava com galhardia. Ele tinha uma autoridade natural, sem ser grosseiro, truculento. Se impunha sobre nós com sua postura patriarcal, mas com elegância, com grandeza de alma. Conseguia dar recados duros, de forma doce. Bastava um olhar, uma tosse característica para monopolizar as atenções. Lembro de que eu era um guri travesso, irriquieto. Gostava de subir em árvores, mergulhar em poços fundos. Certo dia subi em um pé de ameixeira, muito alto, comi muitas frutas, até que engasguei com um caroço da fruta e fui asfixiando lentamente. Desmaiei. Caí de uma altura considerável e bati com a cabeça numa raiz da árvore e destronquei um braço. Ali fiquei desacordado até chegar minha mãe e uma prima para me socorrer.
Meu pai surgiu, vindo da lavoura e consertou meu braço, colocou os ossos no lugar. Onde ele aprendeu, não sei. Ele era um “fac totum”. Cortava cabelo, castrava terneiros, arrumava braços e pernas quebrados. Era pau para toda a obra. Os vizinhos o adoravam.
Pois é. Guardo poeiras da memória, recordações da minha já tão distante infância. A alma não esquece essas recordações. Nem meu pai será esquecido. Dizem que a pessoa morre duas vezes. A primeira é a morte física, a segunda, a definitiva, é quando as pessoas não lembram mais da gente. Enquanto houver alguém para contar histórias, frases, fatos, acontecimentos, não morremos. Eu, por exemplo, sou muito teimoso. Não quero ser esquecido.
Estive na casa velha há trinta dias. Havia algo de diferente naquele dia. Todos os anos temos um começo de primavera tão intensamente alegre, perfumado, colorido pelas flores. A casa estava mais triste, sem a barulheira dos pássaros. Então lembrei do meu pai. Ele havia nos deixado numa primavera. Senti uma vontade de chorar, e chorei. Senti saudades e fiquei triste. Me consolei porque olhei as coisas que ele deixou e que estavam lá. As árvores que ele plantou, o açude que ele fez com uma mísera junta de bois, as cercas, a mangueira que está lá até hoje. Mas acima de todas as coisas está lá a sua memória. A agradável lembrança do maior amigo que a vida me deu e que me deu a vida. Obrigado, pai.

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