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Prometi a mim mesmo escrever colunas menos melancólicas. Com essa intenção escrevi a crônica satírica da Barbearia do Gasparetto. Muitos leitores gostaram, riram um pouco neste mundo conturbado em que vivemos. Hoje não vou falar de morte, embora aborde o tema da saudade. Saudade de alguém que me deixou. Está ventando aqui na Mixaria e o vento me faz lembrar da minha mãe. Queria fazer um texto bonito como minha mãe merecia. Queria ter a sabedoria de Salomão, para escrever com lucidez, queria ser forte como Sansão para não chorar com as lembranças, queria ter a paciência de Jó para não ter pressa de concluir este texto. Penso que vou escrever com o coração, sem aspirações literárias.

Dona Márcia era uma pessoa tão bondosa, humilde, resignada com o que a vida lhe concedeu. Meu pai foi um homem bom, porém, rude, bruto, a seu modo. Nunca vi fazer um carinho na minha mãe. Para meu pai o campo era seu lar, a casa era apenas a extensão da sua vida. Quando minha mãe falava que precisava comprar uma cama, pratos, talheres, uma coberta, o marido respondia que aquilo era luxo, dispensável, que o importante era comprar mais alguns terneiros ou mais um pedaço de campo.

Lembro daquela mulher incrível, chegando da lavoura, quase correndo, pois teria que fazer o almoço, limpar a casa, lavar roupas, alimentar os animais. Nunca se queixava. No máximo emitia alguns suspiros de cansaço. Não havia luz elétrica, o banho era com água fria. Os homens tomavam banho na sanga, no açude: a minha mãe, numa gamela de madeira, timbaúva, feita por meu pai. Nasceu um filho com deficiência mental, hoje está com 61 anos. Sofria de convulsões regulares, se debatia, ficava com hematomas, quase parava de respirar. Duas, três vezes ao dia o triste quadro se repetia. Lembro da mãe chorando de pena do filho doente, rezava, pedia que Deus tivesse pena dele. Não consigo esquecer.

Dona Márcia foi embora. Descansou. A vida dela foi tão infeliz que, esteja onde estiver, estará melhor. Não tem mais pessoas falsas e más que infernizaram a vida dela. Mas ela levou consigo muita coisa. O almoço com galinha frita e mandioca. Nunca mais comi outro igual. Lembro que no meio da noite, caminhava fazendo ruídos no assoalho de madeira e se aproximava da minha cama para ver se o guri estava bem tapado. O inverno por lá era brabo. Minha mãe foi embora e levou nosso relacionamento encabulado, tímido. Nunca dei nem recebi um abraço. Não era desafeto, era uma espécie de vergonha. Era assim naqueles tempos: esse é meu frágil consolo. Mas sei que não valorizei como deveria ter valorizado minha mãe. Hoje seria diferente. Faço coisas que deveria ter feito quando ela estava aqui. Porque não fiz antes? Pura omissão. Imperdoável. Inconformado com as lembranças, planto flores na velha morada, as flores das quais ela tanto gostava, cuido do meu irmão doente como ela pedia que cuidassem depois que morresse. Tudo isso na esperança ilusória que, de alguma outra dimensão ela esteja vendo minha homenagem.

Profundamente religiosa, rezava com fervor. Era o consolo em meio a tanta turbulência. Quase todos os dias se dirigia a igreja em frente da sua morada. Levava consigo uma flor e o filho deficiente Pedia que Deus intercedesse por ele. Que não o deixasse ao abandono no mundo, incapaz que era. Em parte seu pedido não foi atendido. Muitas pessoas más causaram malefícios ao meu irmão.

Quanta oportunidade tive de ficar perto da senhora e não o fiz. Me perdoe. Nunca vou pode corrigir minhas omissões. Me resta o remorso por não ter sido o bom filho que a senhora mereceu ter. Mãe. Neste país em que tudo se rouba, deixe roubar do fundo da memória, escondido num canto, a imagem quase viva da senhora. Parece que a vejo, varrendo o pátio, mesmo com o vento norte soprando forte como hoje. Amem vossas mães enquanto elas estão aqui. A vida é uma passagem!

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